Uma poça d'água.
Elas faziam questão de permanecer ali, juntas, no chão de madeira, formando uma poça d'água. Certamente estavam ali para me lembrar que haviam sido derramadas, que isso teve motivo e que eu não fui forte para lidar com (mais) aquele problema. Saí dali decidida a não lembrar novamente da dor que estava sentindo. Sentei-me no sofá e, enquanto procurava pelo controle remoto, caí em mais uma armadilha. Tudo estava armado, não era possível.
Um porta-retrato.
Cinza, com um coração vermelho na ponta superior direita e outro igual, do lado oposto. Vazio, deixando claro que estava ali só para se mostrar desocupado, certamente para me lembrar da foto que antes ali estava. Eu quase conseguia ouvir risadas perversas das lágrimas que voltaram a descer pelo meu rosto, como se dissessem "a poça ficou lá, mas nós viemos com você". É lógico que ao lado do porta-retrato havia uma foto. De cabeça para baixo. Rasgada ao meio. Irritada, empurrei aquele objeto opaco e sem vida, certa de que isso faria com que ele fosse apagado de minha memória. Pude ouvir o vidro se quebrando e preferi não olhar para os restos mortais espalhados pelo chão de minha sala. Desviando o olhar, fui à cozinha beber um copo d'água. A pia estava cheia de louça, evidenciando a bagunça similar a do resto da casa. Nenhum copo limpo, optei por uma caneca. No armário, a única caneca que estava ali era aquela. Só uma. Me encarando. Esperando me fazer sentir fracassada qualquer fosse minha atitude. "USO EXCLUSIVO DA PESSOA MAIS AMADA DO MUNDO". Eu não poderia usá-la. Não era a pessoa mais amada do mundo. Não era sequer amada, que dirá a mais amada do mundo.
Um grito.
Foi o que eu consegui fazer; soltar um grito. Com toda a minha força, com todo o meu ódio, com toda a minha tristeza e, acima de tudo, com todo o meu amor. Um grito que doeu a garganta, e minhas cordas vocais reclamaram. Num relance, arranquei a caneca de onde estava e a taquei no chão com toda a minha vontade. Aquilo foi satisfatório. Estranhamente satisfatório. Procurando mais coisas para quebrar, olhei para a pia ao meu lado e decidi jogar tudo. Jogava cada objeto sem segurar o grito. Pude ouvir o interfone tocar e arremessei um prato que pegou em cheio. O fone ficou pendurado e continuei minha sessão de terapia alternativa. Estava começando a achar divertido, quando ouvi batidas à porta. Não. Não podiam me ver naquele estado; perdedora, chorando, irritada e com a perna sangrando devido a alguns cortes de estilhaços que voaram em mim. Chamavam pelo meu nome e a força aumentava gradativamente. Eu precisava de uma solução. Ao meu redor, procurava desesperadamente por um método rápido que justificasse o fato de eu ignorar aos chamados. Continuavam a bater. Vasculhava gavetas, revirava armários, e só encontrava panos. Um enforcamento seria complicado de arranjar àquela altura do campeonato. Continuavam a bater, eu suava e já nem sentia os cacos sob meus pés perfurando-me intensa e rapidamente. Apenas via minhas pegadas sangrentas sendo deixadas no chão. Esmurravam a porta. No chão, tudo o que restava, além dos pedaços da louça quebrada, era uma faca de carne.
Uma faca.
Foi tudo o que consegui ver. Como se estivéssemos em um filme Hollywoodiano, e eu e a faca tivéssemos nos apaixonado à primeira vista. Todo o resto desapareceu e sorríamos uma para a outra. Andei em direção a ela, gargalhando. A faca também parecia estar satisfeita, por cumpriria sua obrigação. Ainda ouvia pessoas chamando por mim e pareciam realmente preocupadas. Patéticas. Passei a lâmina delicadamente por meu dedo e pude sentir que estava afiada. Olhei o cômodo em que estava e concluí que, ainda depois de tudo, eu era digna de uma morte decente. Fui até minha varanda, que me pareceu limpa, organizada e propícia à ocasião. Suspeitei que estivessem tentando arrombar a porta. Olhei para fora. No prédio em frente, alguns andares abaixo do meu, havia um casal na janela. Ela fumava e ele estava sem blusa. Fiquei olhando para eles por um tempo. A mulher sorriu, eu retribuí. O vento começou a se manifestar e me senti confortável como nunca. Senti-me leve e desisti de colocar em ação meu plano. Virei-me para abrir a porta aos interessados e convidá-los para entrar, afinal, ainda estavam tentando. A faca ainda estava em minha mão. Sorri sozinha quando percebi o desapontamento dela. Eu estava bem. Estava mesmo. Mas a sala não deixava dúvidas. Vivia naquela casa uma pessoa frustrada, abandonada que de nada serviu e de nada serviria. O porta-retrato quebrado ainda estava no chão. O sangue ainda estava espalhado. A foto ainda estava rasgada. A lembrança ainda estava viva.
Uma lembrança.
Era tudo o que eu tinha. Era tudo o que eu continuaria tendo se não fizesse o necessário. Até porque, só teria aquela lembrança. Não poderia vê-la, apenas percebê-la. Não poderia segurá-la, apenas senti-la. Não poderia desistir. Apenas continuar. Retornei para a varanda e soltei um berro. Como aquele primeiro. Mas não um berro desesperado. Este era decidido e se despedia. A faca, que a essa altura já havia entendido o que aconteceria, estava animada. Pude senti-la cortando meu tecido eptelial. Ouvi o grito de horror do casal da janela e os infelizes do lado de fora continuavam esmurrando a porta. Não esperando que eu a abrisse; tentavam arrombá-la. Senti cheiro de sangue e queria mais. Rasguei-me e berrei novamente, satisfeita. Meus sentidos se misturavam e já não conseguia distinguir o branco do preto. O torpor me dominava e eu não tinha mais controle sobre meus movimentos. Tudo o que via era sangue. Sangue vermelho escarlate, espalhando-se ao meu lado. Não enxergava bem, mas pude perceber que a porta havia sido aberta. Muitos entraram, mas eu só senti a presença de uma pessoa.
Uma pessoa.
Era tudo o que percebia, além de chamas incessantes por dentro. Alguns gritavam, mas só ouvia seu choro e sua voz. Você dizendo pra eu lhe responder. Eu queria, juro que eu queria. O problema é que não cabia mais a mim essa atitude. Você segurou minha mão e um choque percorreu meu corpo. Ouvi seu sussurro "Eu te amo...". Agora. Só agora. Depois de meses esperando por isso, só agora eu ouvi. Agora. Quando eu já não podia mais voltar atrás. Quando a decisão havia sido definitiva. Quando eu não podia lhe responder que o sentimento era recíproco. Não há nada mais triste do que isso: um sonho espatifado no chão, dividido em pedaços que, separados, são incoerentes. O sonho, as medidas para que ele se realize, as dificuldades encontradas, os caminhos desviados, e, ao final, a realização de um sonho. Tudo isso ao meu lado, traduzido em um sangue vermelho escarlate, que me negava a realização.
Uma poça d'água...
Um porta-retrato...
Um grito...
Uma faca...
Uma lembrança...
Uma pessoa...
O fim de um sonho.
O fim de uma vida.
Um comentário:
QUE texto!!!!!
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