quinta-feira, 30 de junho de 2011

O cão tinha fome

Entrou.
O amarelo predominante do quadro acima da cama já havia desbotado. A essa altura combinava mais com o tom envelhecido das páginas de caderno sob a mesa de cabeceira. A persiana deixara de ser branca devido à poeira. Sobre a cama viu seu cachorro de pelúcia. Sentiu dor ao perceber que pedia ajuda. Seus olhos negros ainda estavam cobertor pelo excedente de pêlo e quase choravam de saudade. Ela o havia abandonado. Os títulos dos livros na estante próxima ao armário estavam ilegíveis. Alguns haviam caído e um deles cobria sua pantufa. Ao olhar no armário, pude imaginar as roupas em seu corpo. Chegando mais perto, pôde sentir seu cheiro. Ainda estava forte. Era um cheiro marcante. Fechou os olhos por um momento e desejou poder voltar alguns anos, ainda que por um segundo. Tudo aquilo fazia falta. Há algum tempo não ouvia sua voz. Só então percebeu que este tempo tornara-se grande o suficiente para que derramasse uma lágrima. A primeira desde a mudança oficial. Fechou os olhos novamente e, por um breve momento, sentiu alguém beijando-lhe o rosto. Sabia que estavam juntas. Ainda com dor, virou-se para trás e o cão parecia mais sofrido do que poderia imaginar. Preso à condição de pelúcia, sentiu o tempo passar, sem que pudesse se manifestar. Pegou o bicho no colo e apertou com força. O cheiro dela era ainda mais forte.
E saiu.

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